Sento-me na confortável poltrona, sinto a boa sensação que a penumbra do consultório me propicia e fico sempre a observar os inúmeros livros na enorme estante, enquanto o “doutor” busca minha ficha em seu fichário.
– Como você está? Como foi a semana?
– “Doutor”, passei por mais uma situação bastante incômoda essa semana… em relação a minha profissão, sabe?
Ele acena com a cabeça para que eu continue.
– Senti-me bastante desrespeitado e fiquei bastante envergonhado com os meus alunos. São situações que vão minando a confianças que tenho no sistema educacional, na capacidade que tenho enquanto educador de fazer alguma diferença, enfim, que colocam em xeque o sentido do que faço para sobreviver nessa vida. Como já havia lhe dito outra vez, e como sr. me ajudou a concluir, há um sentido que move todas as atividades, todos os investimentos dessa profissão de educador, os sentidos e práticas são muito intricados, como “sentenciamos” (na verdade, eu sentenciei, mas há quase sempre a sensação que ao consentir com seu silêncio ou gestos de aprovação, o analista parece participar da produção das “verdades” que você vai produzindo ao longo da terapia) certa vez, “é uma profissão que corroí por dentro, não é”?
– Não há nada de mal em envolver-se com aquilo que se faz, desde que saibamos lidar com as frustrações e limites. O que aconteceu?
– Como o sr. sabe, sou professor/”tutor” (faço o gesto das aspas – tem gente que acha ridículo, eu acho um simbolismo tão eficaz) da UFC (Universidade Fatalista do Ceará, recém-criada universidade homônima da universidade em que fiz meu mestrado, a “menina dos olhos” de um governo preocupado em expandir a educação superior – de qualidade? – para o interior) na modalidade educação a distância. Se já não bastasse a crise de identidade que sinto com essa história de tutor, a propósito finalmente lembrei-me de olhar no dicionário o sentido de tutor e fiquei mais confuso ainda, pois se trata de quem protege, defende, supervisiona, governa… mas, voltando ao assunto, no término de mais uma disciplina tive uma tremenda raiva e frustração. Primeiro, a disciplina ocorreu de forma muito estranha, pois foi a primeira que eu ministrei, supervisionei, sei lá… em que só ocorreram dois encontros presenciais, sendo que um foi prova escrita, ou seja, praticamente não cumpri o papel de professor, de educador da forma direta, cara a cara. Meu incômodo começou quando vi que dois encontros foram substituídos por webconferência. Por mim, seria até interessante, pois deixaria de fazer duas viagens para o interior, fazendo as aulas de Fortaleza mesmo (ainda assim, fiquei reticente), mas quando os alunos me disseram da qualidade da internet na cidade deles, me veio a indignação, principalmente quando eles me disseram que já ocorreram várias webconferências que, para eles, foram no máximo “audioconferência”. E vocês reclamaram?, perguntei a eles, no que eles disseram que não.
– E isso te incomodou? Digo, o fato de que eles estavam aparentemente acomodados com a “má sorte” deles (ele não fez o gesto das aspas, mas acho que a expressão deveria leva-las)?
– Com certeza. Não me conformo de ver jovens estudantes universitários nessa situação de aceitar as coisas como simplesmente são, mas o meu incômodo vai bem além, fico incomodado com o “faz de conta” que fatos como esse ensejam, com o desperdício do recurso público, menos escasso do que mal empregado. “Doutor”, o governo bate suas metas quantitativas na educação dessa forma, as instituições fingem que ensinam e os alunos que aprendem, no final temos profissionais, ou melhor, portadores de canudos mal formados, enfim… Mas com tudo isso, foi o desfecho da disciplina que me trouxe todos aqueles sentimentos de que falei… De repente, atrasadamente, percebi que a avaliação principal da disciplina não seria o seminário de apresentação das pesquisas que havia instruído os alunos a fazer, mas sim uma prova escrita. Primeiro, veio-me uma enorme sensação de irresponsabilidade, pois eu só percebi a incoerência após uma aluna ter me questionado sobre a mudança. Eu não percebi… Questionei a pessoa que secretaria o professor responsável pela disciplina e, mesmo mandando três e-mails, não recebi nenhuma explicação de porque haveria prova no lugar dos seminários.
– Para eu entender melhor, qual o problema de ser prova no lugar de seminário? Por acaso, trata-se da sensação de falta de autonomia, ligada à posição de tutor?
– Sem dúvidas que passa por aí, pois o fato de não poder determinar, escolher as atividades, o planejamento da disciplina já é um enorme incômodo, mas, nesse caso, a questão foi além disso, pois quando há uma mudança como essa e não compreendo o porquê, gostaria de receber explicações, gostaria que houvesse atenção para com o meu mal-estar e o mal–estar dos alunos, gostaria, no fim , de me sentir parte do processo, parte que influencia, que é convidado a intervir, a opinar. Afinal, eu os instruí a fazer a pesquisa, os convenci da importância dela para o aprendizado deles e a contribuição que eles poderiam dar ao município conhecendo melhor a realidade educacional deste. Os alunos fizeram a pesquisa e preparam a apresentação, mas na última semana souberam que fariam uma prova. Fiquei muito envergonhado, pois sequer sabia porque. Nesse momento, minha crise de identidade quanto a posição de professor/”tutor” começou a se desfazer, mas para um lado que eu temia, ou seja, de entender que minha função é a de um mero aplicador de atividades, um mero fiscalizador das atividades que “alguém” acha por bem fazer, de um “dador de aula”.
Tenho a impressão que ele quase riu com essa última expressão, mas deve ter sido impressão mesmo.
– Como os alunos reagiram a isso?
– Bem, aí reside outro problema… alguns poucos, uns dois ou três, questionaram. Um em especial que quase não participou de nenhuma atividade da disciplina, mostrou-se bastante frustrado, mas em dado momento me disse: – “Professor, a gente fez o seminário, preparou a apresentação…”, no que respondi, – “eu sei, disso, estou tão indignado quanto vocês, disse inclusive a eles por e-mail que se tratava de uma falta de respeito para com vocês”. Depois de certo silêncio, ele olhou-me e complementou: – “Sabe professor, a gente acabou deixando um pouco de lado o conteúdo da disciplina, sabe, para fazer o seminário, porque não dá para fazer as duas coisas juntos né…”. Como assim?!? A indignação dele não era, no frigi dos ovos, com a falta de planejamento, com as mudanças sem porquês, com a desvalorização de uma pesquisa feita por eles, mas sim pelo fato dele não ter estudado adequadamente o conteúdo da disciplina… Meu Deus! Isso me fez lembrar outra coisa: e os outros colegas professores/”tutores” e os alunos dos outros polos, foi só eu que me incomodei com essa questão? Foi só eu que passei os seminários, que obedeci a proposta da disciplina? Mas aí “doutor”, veio o golpe de misericórdia, quando abri o envelope de provas e a li para os alunos… (passo a mão no rosto demonstrando claramente meu nervosismo)
– O que tinha nas provas?
– “Doutor”, foi a prova mais mal feita que eu já havia visto na vida. Por exemplo, em uma disciplina que ministrei também pela EaD, uma das atividades consistia em elaborar questões sobre a teoria de dois autores, ou seja, eu tinha que avaliar como os alunos construíam questões. Avaliação é uma das partes mais complexas da educação, mexe com muita coisa, pois ali o professor de certa forma indica o que há de mais importante na disciplina, o que ele quer que os alunos aprendam essencialmente da matéria, com qual nível de aprendizagem ele está lidando, como ele vê o nível da turma etc. Além disso, fazer uma prova não é fácil, tem que se atentar para o quanto cada questão pode contribuir com a aprendizagem do aluno, ele errando ou acertando, tem que verificar se a pergunta não se responde ou se não responde outras questões, tem que estabelecer claramente um critério de certo e errado etc. “Doutor”, digo-lhe com muita tranquilidade que se essa prova fosse para eu avaliar, o professor que a elaborou não tiraria sequer um três.
– Por que?
– A primeira questão “doutor”, pedia a opinião do aluno sobre a educação (começo a me exasperar igualmente quando li as questões para os alunos na sala de aula). Como assim a opinião? Isso é primário, é o absurdo do básico (isso existe?). Quando eu peço numa prova a opinião do aluno sobre qualquer coisa, não é preciso corrigir a questão, pois qualquer coisa que o aluno escreva estará correta, desde que tenha algo a ver com o tema sugerido. Depois havia três questões de múltipla escolha que a última vez que havia visto foi na quarta série. Perguntava, por exemplo, quem fundou a Companhia de Jesus. Outra indagava qual lei regia a educação brasileira. Um dos itens dessa última era a CLT. “Doutor”… Que vergonha!
– Vergonha?
– Vergonha da minha profissão, vergonha de está aplicando uma prova daquela, vergonha de ver que é mesmo um faz de conta… Eu fui até antiético, perdi as estribeiras, falei aos alunos que metade daquelas questões minha filha de três anos as responderia. Tive muita vontade de rasgar aquela prova. Uma disciplina com um conteúdo tão rico, tão complexo, tão essencial para o futuro professor, e a prova quer saber do aluno quem fundou a Companhia de Jesus… se o professor queria ressaltar a importância histórica da presença dos jesuítas no Brasil do ponto de vista educacional, que pedisse aos alunos que dissertassem sobre o assunto, você dá o mote e manda o aluno se virar, comentar, mostrar que compreendeu o sentido da matéria. Não tenho vergonha de dizer que não tinha certeza da resposta, acho que é Inácio de Loila, faz fiquei na dúvida se não fora Dom João, mas é só ir no wikipédia ou no google para saber, o que é essencial foi o papel deles no início da colonização, qual o papel da educação nesse sentido, qual o sentido e os significados da expulsão deles do país, enfim… muito triste “doutor”, fiquei tão angustiado, tão mal…
– E por que você acha que ficou angustiado? Qual o foco desses sentimentos?
– Ah “doutor”, você sabe que eu vejo a educação como algo muito maior do que uma profissão ou uma instituição social. É algo maior do que eu consigo exprimir que está em jogo aqui, em cada momento, mas muitos “educadores” (mais uma vez o gesto) parecem não entender a coisa dessa forma. Quando as coisas caminham assim na educação, parece que minhas esperanças com o mundo vão por água abaixo, passo a acreditar menos em tudo. Mas fiquei a me perguntar, por que me angustio tanto? Por que os outros não se angustiam também?
– Talvez você se angustia tanto por que vive de forma muita intensa sua profissão (não só ela). Como já havia lhe dito, você parece que sempre está a carregar um peso enorme em suas costas e usa a expressão dos sentimentos através da raiva, da angústia, do protesto para dar vazão a eles. Quanto a questão dos outros, eu lhe pergunto: será mesmo que os outros também não se angustiam? Entre a angustia e a sua expressão não parece haver certa distância?
– “Doutor”, parece que o tempo acabou não foi?
P.S. Esta é uma péssima e livre interpretação da atuação de uma analista, muita mal baseada na série que no momento me vicia, “sessão de terapia” dirigida por Selton Melo e apresentado no GNT. Acredito que, de forma geral, os analistas são bem mais competentes e profundos do que eu. O paciente/professor pode ser eu mesmo em uma situação talvez vivida recentemente.